Youthstream, organizadora do Mundial de Motocross, vendida a grupo suíço com controle chinês
Redação MotoX.com.br: Lucidio Arruda - Fotos: Youthstream / Ray Archer / Maurício Arruda / Pascal Haudiquert
Apesar da transação, Giuseppe Luongo continua na organização do campeonato
Após uma negociação que correu sem muito alarde, a Youthstream anunciou nesta quinta-feira (31 de janeiro) sua aquisição pelo grupo de esportes e mídia
Infront. A companhia que comprou a promotora e detentora dos direitos do Mundial de Motocross até 2032 é sediada na Suíça e controlada por capital chinês.
Losail, no Catar, uma etapa que ninguém queria ir, sem ninguém para assistir
A Infront nasceu em 2002, resultado da fusão de duas outras companhias suíças: a CWL e a Prisma. Seu início foi totalmente dedicado ao futebol, gerando as imagens de televisão para a Copa do Mundo FIFA de 2002. Em 2005 a Infront não teve seu contrato com a entidade renovado e passou a diversificar sua atuação para outros esportes, apesar de continuar com o futebol como sua principal fonte de receita.
Contando com 35 escritórios e cerca de 900 funcionários, sua gama de serviços vai da produção e transmissão de mídia a administração de Hospitality Centers, passando pelo marketing e comercialização de patrocínios. A empresa é representante da maioria das federações de esportes de inverno e tem também seu braços sobre vários esportes olímpicos.
O presidente e CEO da Infront é Philippe Blatter. O sobrenome não lhe soa estranho? Philippe é sobrinho de Joseph Blatter, Presidente da FIFA de 1998 a 2015 que, acusado de corrupção, cumpre seis anos de suspensão de suas atividades na entidade.
Philippe Blatter e Giuseppe Luongo
Em 2015 a Infront foi adquirida por mais de 1 bilhão de dólares pelo grupo chinês
Wanda Group, um conglomerado imobiliário que opera vários grupos de salas de cinema e é detentor da WTC - World Triathlon Corporation, incluindo a marca Ironman. Portanto, em última instância, o Mundial de Motocross está a partir de agora sob domínio chinês.
Apesar da mudança de capital, a operação da Youthstream continua nas mãos de Giuseppe Luongo, que há anos vem preparando a sucessão a favor de seu filho David Luongo.
O que podemos esperar do Mundial de Motocross daqui para frente?
Nas últimas décadas o Campeonato Mundial de Motocross passou por um grande processo de profissionalização, não há dúvidas sobre isso, porém pouco dos benefícios desta profissionalização chegou aos pilotos e equipes, muito pelo contrário.
Voltando um pouco mais de 30 anos na história conseguimos explicar melhor isso e o leitor pode comparar melhor os cenários.
O Brasil passou a receber eventos do Mundial de Motocross na década de 80. Tivemos duas provas de "pré-mundial" com participação de alguns pilotos estrangeiros para homologação dos circuitos e nos anos seguintes etapas do Mundial de Motocross de fato. Na época as categorias 125, 250 e 500cc tinham seus campeonatos independentes. O custo para realizar uma etapa no Brasil girava ao redor dos U$150 mil a U$200 mil, incluindo o transporte dos 15 primeiros do campeonato, mecânicos e motos. Geralmente a perna sul-americana do campeonato era bancada em conjunto com outras etapas em países vizinhos, como Argentina ou Venezuela, para diluir estes custos de transporte.
Mundial de Motocross 125 no Brasil, em 1991
Um piloto independente que quisesse participar de uma etapa precisava apenas da carteirinha FIM, que custava U$300,00 à época (com validade para o ano corrente). Porém apenas se classificando para as provas principais entre os 40 pilotos mais rápidos, o piloto já recebia uma prêmio de largada equivalente aos U$300. Este dinheiro de largada, mais a premiação por pontuação, ajudou a bancar a carreira de muitos pilotos independentes no campeonato.
Depois de "vender" o campeonato à Dorna, que fracassou em promover a modalidade, Giuseppe Luongo retornou ao comando do Mundial no início dos anos 2000 e tratou de avançar na tal "profissionalização" do esporte. Um dos primeiros passos foi extinguir a premiação!
Ao longo dos anos não apenas as taxas de inscrição por etapa foram à estratosfera, batendo nos 1.000 Euros atualmente, como a Youthstream passou a cobrar outras taxas das equipes - como o espaço e infraestrutura de box. Obviamente as equipes e pilotos oficiais, não pagam essa taxa de inscrição. Os times atualmente pagam uma taxa anual de "serviços", que incluem, entre outras coisas os serviços de mídia e produção de imagens durante o campeonato. Daí surge a lista de
Pilotos e Equipes Oficiais aprovadas todo ano.
MXGP da Turquia 2018
Não foi apenas das equipes que a Youthstream passou a cobrar mais. Hoje somente as taxas de "direitos" para sediar uma etapa cobradas dos organizadores podem superar
um milhão de euros. Fora os custos efetivos de organização, construção da pista, infraestrutura local e de comunicações, etc.
Os custos subiram tanto que inviabilizaram a realização dos eventos sem um forte apoio financeiro dos governos locais. Hoje é impossível uma etapa do Mundial de Motocross pagar seus custos, quiçá gerar lucro, apenas com a bilheteria e patrocínios locais.
Os principais "organizadores" deixaram de ser os clubes, pistas e federações. O atual esquema do campeonato é completamente dependente de ajudas governamentais. Isso explica boa parte da transição do campeonato para fora da Europa como Indonésia, Catar e neste ano
China, com duas etapas, não por acaso país sede do Wanda Group.
Recentemente circuitos como o de Udevalla, na Suécia e RedSand, na Espanha declararam que deixaram de sediar etapas do Mundial por falta de subsídio estatal. Para onde vai todo o dinheiro pago pelos promotores locais? A Youthstream tem vários patrocinadores do campeonato, inclusive o principal, Monster Energy, que dá nome à serie, mas todos os custos das etapas continuam nos ombros dos promotores locais. Todos os custos de participação dos pilotos e equipes continuam nos ombros dos próprios. Excetuando poucas equipes de fábrica, a grande maioria dos times fecha o ano no vermelho. Recentemente até a equipe de fábrica da Suzuki abandonou o campeonato!
Cenários possíveis com a entrada da Infront
A entrada de um gigante na modalidade pode ser uma faca de dois gumes. Pensando pelo lado positivo, teremos uma empresa com grande trânsito entre grandes difusores de mídia, principalmente televisão, e capacidade para atrair mais dos chamados patrocinadores externos, aqueles cuja atividade principal não está ligada ao motociclismo.
O belíssimo circuito de Neuquén, na Argentina, permanece no campeonato graças ao dinheiro público do Governo da Patagônia
A questão é: esse possível fluxo de dinheiro beneficiará o esporte ou servirá apenas para engrandecer o "espetáculo"?
Por beneficiar "o esporte", entenda-se beneficiar pilotos e equipes e honrar as tradições da nossa modalidade. Alguma parcela do dinheiro tem que chegar às mãos das equipes e, em última análise, dos pilotos. Na Formula 1, considerado o esporte a motor mais profissional, a grana dos direitos de televisão e imagens é dividida com as equipes, conforme a pontuação de cada uma. Não quero também ver um campeonato todo disputado em pistas artificiais montadas em autódromos ou estacionamentos de hotéis. Há de se haver condições de organizadores vinculados a circuitos tradicionais continuarem sediando etapas.
Pelo lado negativo... bem, o medo é que o conglomerado coloque o retorno aos acionistas acima de tudo e deixe de lado a base de sustentabilidade da modalidade a longo prazo.
Não podemos esquecer que o maior nome em atividade no campeonato hoje, veio de uma família com poucos recursos, que bancou sua carreira amadora e início profissional a duras penas. Será que Antonio Cairoli teria condições de vencer as barreiras de entrada no Campeonato Mundial hoje em dia? Uma aventura como a do brasileiro Roberto Boettcher nos anos 70, que juntou um dinheirinho e foi à Europa enfrentar o frio, a neve e os maiores pilotos do mundo por conta própria, seria inimaginável.
Motocross das Nações 2019 será no autódromo de Assen
Por mais que o Motocross tenha crescido - e podemos incluir aí as demais modalidades fora de estrada - ainda é um esporte de nicho, que depende dos apaixonados, gente que vive seu dia a dia para sobreviver e, quem sabe, crescer. Colocar no comando do esporte pessoas que não têm a mínima ligação, nem mesmo afetiva, e compromisso de longo prazo com o mesmo, é um grande risco.
Se o Motocross perder o apelo ao grande público (ou aos governantes) nos próximos anos, a Infront não perderá o sono com isso. Poderá substituir essa renda com um torneio de MMA, skate, sinuca ou qualquer outra coisa que esteja na moda. Compete à FIM, entidade máxima do motociclismo, impor diretrizes rígidas defendendo a sobrevivência de pilotos, equipes e, acima de tudo, do próprio campeonato e modalidade. Mas essa não foi uma de suas posturas nos últimos 20 anos.